Blockchain: um experimento em governança sem poder centralizador

Bruno Zago

13 fevereiro 2017 - 13:47 | Atualizado em 29 março 2023 - 17:43

Pessoa utilizando celular com símbolo de rede de aplicativos em segundo plano

O singular ecossistema do Bitcoin, composto de pares e usuários, encontra-se em forte contraste com a maioria das organizações humanas. O público votante está acostumado a resolver questões por meio do sistema eleitoral de maioria, além de decretos executivos impostos pelo Estado. Enquanto isso, no mundo corporativo, as diretrizes são estabelecidas de cima para baixo, e os que não as cumprem acabam demitidos.

Como outros sistemas de governo, todavia, a democracia nunca questiona a necessidade de posições de poder. Contudo, as mesmas regras e atitudes não definem a governança do ecossistema blockchain.

À luz das ideias políticas convencionais, um sistema descentralizado e totalmente voluntário de governança não deveria ser possível e, muito menos, ideal. O sucesso do Bitcoin como experimento monetário e social depende, portanto, da destruição dessa narrativa. Diferentemente de outros sistemas, sua organização não é definida por estruturas de poder, mas pelo consenso voluntário e concorrência aberta.

Contraste com a democracia

Veja a democracia, considerada quase unanimemente no meio acadêmico ocidental a forma mais ideal de governança, que busca preencher posições de poder da forma mais igualitária possível, a saber, o voto popular.

O cientista político Francis Fukuyama famosamente observou: “o que podemos estar testemunhando… é o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final de governo”, levando-nos a acreditar que progresso possa ser feito. Como outros sistemas de governo, todavia, a democracia nunca, de fato, questiona a necessidade de posições de poder. É uma presunção subjacente que o poder – a habilidade de obrigar alguém a alguma coisa – seja um pré-requisito necessário para organizar os esforços coletivos da forma mais socialmente benéfica.

Então, o que acontece quando não podemos forçar nossos pares a obedecer? O que fazemos quando não há mais ninguém no comando? Essas são as questões que desafiam as criptomoedas, tornando-as não só um experimento em teoria monetária, mas também um experimento radical em governança descentralizada. Como funciona tal sistema, e como ele pode prosperar?

O DAO original

Na essência do Bitcoin está uma rede peer-to-peer (P2P, par a par ou ponto a ponto) de clientes (nós) e mineradores; no topo da rede está um ecossistema muito mais amplo, composto de uma população diversa de usuários. Bitcoin é a organização autônoma descentralizada original (DAO). Esses usuários incluem todos que têm algo a ganhar com o crescimento do uso do bitcoin, tais como os negócios bitcoin que esperam receitas (lucros) maiores como resultado. Muito mais comum, todavia, são usuários diários que se tornam clientes importantes pela simples virtude de terem bitcoins.

A razão para tal é inerente à funcionalidade do blockchain, o avanço na ciência computacional que está no coração do Bitcoin. Por sua própria arquitetura, os blockchains públicos demandam estruturas locais (bitcoins nativos) para funcionar. Esses bitcoins são criados (minerados) e recompensam os mineradores, ou obtidos sob a forma de taxa de serviço, em troca de verificação de transações e proteção da rede. Esse incentivo criado pelos bitcoins nativos é o que mantem a rede como um todo segura.

Em especial, no caso do Bitcoin, um número fixo de tokens (chaves) significa que, caso o uso e a posse aumentem, também aumentará o valor e a riqueza dos usuários existentes. Assim como o ganho dos bitcoins recém-criados e das taxas de transação incentivam os mineradores a proteger a rede, a mera posse deles incentiva o detentor a contribuir de alguma forma para a melhora do ecossistema.

Em vez de uma simples rede de pagamento, o Bitcoin assemelha-se a uma corporação com acionistas, mas sem CEO, diretores ou quaisquer diretrizes além das registradas no seu protocolo. Dessa forma, o Bitcoin é a organização descentralizada autônoma original (do inglês, decentralized autonomous organization – DAO), e tem sido muito exitosa no decorrer dos seus sete anos de existência sem qualquer delegação formal de autoridade.

Substituindo a autoridade

Inicialmente, a falta de um líder ou de um comitê de decisão pode parecer um retrocesso significativo. Como diz um provérbio blockchain: “esse é um recurso, não um erro”.

Governos e corporações necessitam de tais figuras para tomar decisões em nome do coletivo. Contudo, o conhecimento de uma pessoa é limitado, e elas sempre podem errar. Decisões equivocadas do alto escalão podem e, com frequência, levam empresas e nações à ruina. É inegável que, como qualquer instituição ou empresa, a utilidade e o crescimento do bitcoin geram desafios que requerem soluções e esforço direcionado. Felizmente, a falta de uma hierarquia estrutural não encerra nenhuma barreira real à resolução de problemas. Em vez de fazer lobby (política) /convencer um tomador de decisão (iniciativa privada), mais vale gastar energia competindo no mercado. Toda pessoa é livre para ter ideias, programar ou desenvolver protocolos alternativos em cima do protocolo Bitcoin.

A ausência da figura de autoridade central também não é sinônimo de falta de liderança. Pelo contrário, significa que toda e qualquer pessoa é capaz de liderar. A diferença é que sem compulsão, ideias e soluções diferentes devem competir abertamente. Ninguém é forçado a aceitar meu serviço ou a usar o meu software. A concorrência resultante significa que soluções múltiplas para problemas diferentes podem ser testadas no mercado e os usuários, em última instância, votarão com seus pés.

Essa dinâmica simples é o segredo não só do funcionamento do ecossistema Bitcoin, mas também do seu sucesso sobre o planejamento central. Soluções ineficientes para problemas de parte dos usuários fracassam isoladamente, sem ameaçar todo o ecossistema; soluções adequadas podem ter êxito e crescer por seu próprio mérito, aumentando sua participação de mercado.

Utilidade crescente

Então, o que a dinâmica desse ambiente significa para os usuários?

Significa que existem várias classes de desafios limitantes à utilidade e adoção do Bitcoin que, em última instância, só podem ser resolvidos pelas ações dos próprios usuários. À medida que a utilidade do bitcoin aumenta, aumenta também o seu valor, e todos se beneficiam. Enquanto motivados a melhorar o ecossistema como usuários, deveríamos identificar problemas cujas soluções estão em nosso poder.

Isso pode ser tão simples como educar os outros sobre o funcionamento e as ideias por trás da criptomoeda. Vários outros pontos podem ser resolvidos por meio de milhares de serviços, negócios e aplicativos que podem ser desenvolvidos sobre a rede peer-to-peer existente. Dentre eles, serviços que facilitam a compra do bitcoin por parte de novos usuários ou mesmo carteiras (wallets, no original) que melhoram a experiência do usuário e aumentam a segurança de seus fundos.

Esse método de resolução de problemas tem diversas vantagens, sobretudo, porque é o mais acessível às pessoas. Tais soluções não requerem consenso, e são implementadas rapidamente via uso da estrutura central e do processo decisório de indivíduos, embora ainda operando dentro da infraestrutura do protocolo consensual original.

O benefício de construir serviços e aplicativos em cima do estabelecido e seguro ecossistema blockchain é enorme. O token (chave pública compartilhada) gera compatibilidade entre serviços e aplicações, levando ao poderoso efeito de rede que maximiza a utilidade. À medida que a utilidade do bitcoin aumenta, aumenta também o seu valor, e todos se beneficiam. Mesmo assim, o próprio blockchain ainda está longe de ser perfeito.

Então, como controlar problemas mais profundos que não podem ser resolvidos sem alterar o protocolo subjacente?

Lei e consenso

A rede peer-to-peer do Bitcoin estabelece a estrutura dentro da qual todo o resto opera. Ela possui valores codificados que todos concordam em respeitar para ter acesso a uma chave compartilhada que ela disponibiliza. Dessa forma, o consenso sobre o protocolo Bitcoin se parece muito com um contrato social inspirado na lei policêntrica – a ideia de que sistemas legais competem livremente como qualquer outro bem ou serviço. O protocolo Bitcoin contém as regras que todos os participantes concordam em seguir – ao contrário da lei monopolística, em que são compelidos a fazê-lo. Os participantes escolhem livremente fazê-lo em seu próprio autointeresse, e podem abandoná-lo quando quiserem. O desenvolvimento público do Blockchain guiado por interesses especiais é uma má ideia.

Se nenhuma parte pode ser forçada a respeitar a estrutura legal do protocolo, essa deve única e exclusivamente servir às necessidades universais de todos os usuários, para que não perca participação de mercado e seja substituída. É por isso que o desenvolvimento de qualquer protocolo de criptomoeda requer um consenso verdadeiro.

Um exemplo espetacular de como isso pode dar erro é, claramente, o caso da plataforma Ethereum. Segundo o ataque ao “The DAO”, um grupo de usuários do Ethereum e do DAO lideraram um esforço para reverter o contrato explorado ao alternar o histórico do Blockchain. Não fez diferença que, dentre esses usuários, tivéssemos desenvolvedores do próprio Ethereum, ou muitos investidores prejudicados no DAO.

Para continuar usando paralelos policêntricos, essa “decisão” foi considerada inaceitável por grande parte do ecossistema. Eles não tinham obrigação de aceitá-lo e, em vez disso, optaram por continuar a operar pelas regras consensuais originais de imutabilidade, a saber, levando à divisão pacífica da rede, do ecossistema e dos bitcoins correspondentes.

Esse é certamente o evento mais impactante já ocorrido no mundo das criptomoedas, e é um bom sinal para seu futuro. Os clientes modernos sempre tomaram por dada a habilidade de escolher bens e serviços, e a concorrência benéfica que se segue. Mas nunca antes a mesma concorrência foi estendida às próprias regras do sistema ao qual concordamos fazer parte (democracia, capitalismo).

Essa é a ideia central da lei policêntrica. Até pouco, essa ideia tinha permanecido no âmbito de teorias legais e econômicas abstratas. Graças às criptomoedas, pela primeira vez temos acesso a exemplos reais de regras derivadas de consenso e livres de conflito, e a ordem espontânea que segue na medida em que indivíduos tentam determinar quais são as melhores. Os desenvolvedores de projetos como o Ethereum souberam reconhecer o sucesso do Bitcoin como DAO original e propuseram melhorá-lo. Talvez, o que não percebam é que o próprio sucesso do Bitcoin se deve precisamente à escolha consciente de limitar o protocolo a uma estrutura simples e neutra de trocas.

Devemos trabalhar para mudar a mentalidade política do “vencedor leva tudo” com a qual nos acostumamos. A concorrência comercial cria um mundo de soma positiva.

Se as lições do controverso caso Ethereum não forem entendidas, a rede blockchain, baseada no consenso, não sobreviverá. A alteração do protocolo de forma proposital nunca será aprovada por todos os usuários, gerando novas cisões. Tal ação poderia ser tomada facilmente em uma estrutura hierárquica tradicional, todavia, mesmo com boas intenções, são incompatíveis com o fortalecimento de um protocolo voluntário de transferência de valores. O desenvolvimento público do Blockchain guiado por interesses especiais é uma má ideia.

O blockchain mais usado será, portanto, aquele que atende melhor o objetivo-base de facilitar a troca e a cooperação universais.

Qualquer intervenção além de ajustes universalmente vantajosos a essa função não deveria ser implementada, afinal, é provável que o consenso não se mantenha, e a utilidade potencial da rede seja perdida no processo. Caso houver desacordo quanto ao que se constituiu “troca e cooperação universais”, vote com seus pés. A competição é a única forma de identificar qual implementação funciona melhor.

Mudança de pensamento

Nesse ambiente, os usuários são capazes de se auto-organizarem tendo em vista objetivos e ideias compartilhados. Isso significa que se dedicarão à atividade em que acreditam poder agregar valor ao sistema, assim como escolherão as regras protocolares subjacentes que seguirão. Nenhuma dessas ações exige permissão e os conflitos de poder estéreis que naturalmente emergem.

Esse modo de pensar é totalmente distinto do convencional – protestar nas ruas ou culpar X ou Y por uma situação. Como meu ex-colega na FEE, Max Borders, escreveu: “ele exige uma mudança de atitude que requer que paremos de buscar líderes, e passemos a buscar parceiros”.

Ao fazê-lo, devemos trabalhar para mudar a mentalidade política do “vencedor leva tudo” com a qual nos acostumamos. A competição comercial gera um mundo de soma positiva – isto é, um mundo de riqueza crescente. Contudo, as vantagens de um sistema competitivo começam a ser anuladas caso energia não seja direcionada a esforços criativos e construtivos.

Caso detecte falhas no protocolo ou falta de serviços, crie uma alternativa viável. Caso você acredite que o consenso adotado prejudica a missão do protocolo – facilitação da cooperação e troca – troque de criptomoeda ou bifurque a atual.

Bifurcação pode parecer um evento indesejável aos céticos que não reconhecem a complexa dinâmica do processo. Mas a competição única que se segue, e a mentalidade nova e mais produtiva que ela permite, são a chave do sucesso desse experimento em governança descentralizada.

Artigo original: “Blockchains: An Experiment in Governance without Power”
Autoria: Ariel Deschapell

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